“Estamos aqui e não vamos correr”, dizem Guarani-Kaiowa em novas recuperações de terra

Spensy Pimentel

Mato Grosso do Sul, Brasil. Mais dois grupos guarani-kaiowa cansaram de esperar pela ação do governo brasileiro. Não bastassem as dezenas de áreas cuja demarcação esses indígenas aguardam há anos, mesmo áreas que já tiveram seus decretos de homologação assinados pelo presidente da República continuam ocupadas por fazendeiros, em função da lentidão da Justiça quando se trata de garantir os direitos indígenas e da rapidez de certos juízes para conceder medidas a favor dos colonos brancos.

Os dois grupos que ocuparam terras nas últimas semanas são da região de Paranhos (MS), em plena linha de fronteira com o Paraguai. A região é historicamente violenta e perigosa, em função da impunidade a assassinos de aluguel proporcionada pela fronteira sem fiscalização. Além disso, há grande afluxo de armas de fogo, devido à presença do narcotráfico – enormes plantações de maconha destinadas a abastecer as grandes cidades brasileiras de São Paulo e Rio de Janeiro estão ali próximas, do lado paraguaio.

Em 10 de agosto, foi a vez do grupo de Arroio Korá, em Paranhos (MS). Em dezembro de 2009, os 7,1 mil hectares dessa terra indígena foram homologados pelo então presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Apesar disso, poucos dias depois, um dos ministros mais conservadores do Supremo Tribunal Federal, Gilmar Mendes, concedeu medida em caráter liminar que impediu o governo de completar o processo de concessão das terras aos indígenas e entregar-lhes a posse da área.

No dia da recuperação das terras, as mais de 400 pessoas reunidas ali divulgaram a seguinte nota, divulgada pela Aty Guasu, organização política dos Kaiowa e Guarani:

“Enquanto esperamos a demarcação e devolução de nossos territórios (tekoha guasu), a cada dia as nossas crianças e lideranças estão morrendo nas margens das rodovias BR e nos acampamentos. Esses fatos não aguentamos mais, não vamos mais aguardar nas margens das BRs e nos pequenos acampamentos isolados. Por isso, hoje, 10 de agosto de 2012, começamos a reivindicar o despejo dos fazendeiros que invadiram os nossos territórios tradicionais. Sabemos que há vários territórios tradicionais que já foram totalmente demarcados e reconhecidos pelo Governo Federal e a Justiça Federal. Mesmo assim, nós, Guarani e Kaiowá, somos impedidos de reocupar o nosso tekoha guasu, enquanto os fazendeiros continuam ocupando e destruindo o nosso território. Só por essa razão, nos iniciamos a manifestação pacífica e reivindicamos a devolução imediata de todos os nossos territórios antigos que são nossos (…). Sabemos que os pistoleiros das fazendas vão matar-nos, mas, mesmo assim, a nossa manifestação pacífica começa hoje.”

O grupo de Arroio Korá esperou pacientemente pela Justiça dos karaí, como chamam os brancos, por mais de três anos. Permaneceram alojados em uma pequena fração da terra, mas, diante da falta de perspectiva de ver seu problema resolvido, mais de 400 pessoas, segundo informação da Aty Guasu, agora ocuparam uma parte maior, a fim de ampliar o espaço disponível para suas plantações e moradias.

O revoltante é que os Kaiowa e Guarani não chegaram ontem à região. Durante a ditadura militar (1964-1985), o governo justificava o fato de não lhes garantir terras nessa mesma região com a desculpa de que seriam “índios nômades”. Nada mais falso: há abundantes registros da presença desses indígenas desde o século XVIII nessa área, que fica nas proximidades do antigo Forte de Iguatemi, marco da ocupação militar dos portugueses, que disputaram essas terras com a Espanha.

Os de Arroio Korá foram atacados por homens armados no próprio dia 10, e um homem de cerca de 50 anos desapareceu durante a agressão dos paramilitares, ali chamados de pistoleiros. Quatro dias depois, uma criança de dois anos morreu, segundo os indígenas, em decorrência do trauma com o ataque.

Numa nota divulgada logo após o confronto, o grupo relatou como os pistoleiros lançavam ofensas e ameaças:

“Ouvimos os homens-pistoleiros, que riam, riam muito em nós e falavam gritando: ‘Vocês índios merdas! Já morreram todos aí’. ‘Hoje, nenhum índio vai sair vivo daqui’.

Ao longo do mês de agosto, a presença constante de autoridades federais não impediu que os fazendeiros continuassem a tentar intimidar os índios, com tiros para o alto e ameaças constantes. A um repórter da imprensa regional, um fazendeiro chegou a declarar, em alto e bom som:

“Se o Governo quer guerra, vai ter guerra. Se eles podem invadir, então nós também podemos invadir. Não podemos ter medo de índio não. Nós vamos partir pra guerra, e vai ser na semana que vem. Esses índios aí, alguns perigam sobrar. O que não sobrar, nós vamos dar para os porcos comerem. (…) A maioria dos fazendeiros está comigo. Arma aqui é só querer. Eu armo esses fazendeiros da fronteira rapidinho, porque o Paraguai fica logo ali, e na guerra não tem bandido”.

Novos ataques contra Arrroio Korá têm acontecido constantemente. Os homens armados, depois dos confrontos de 10 de agosto, não fizeram mais vítimas, mas em outra ocasião destruíram pertences dos indígenas e, com tiros diuturnos, levam a cabo a estratégia de manter o terror constante.

A desconfiança da capacidade do Judiciário de resolver a disputa em Arroio Korá se fundamenta em casos semelhantes, como o de Nhanderu Marangatu (Antonio Joao – MS), onde os Kaiowa aguardam desde 2005 o julgamento da ação movida por fazendeiros, após terem sido despejados por decisão liminar. Recentemente, os Pataxó Hã-hã-hãe da Bahia venceram no STF uma disputa com fazendeiros cuja tramitação no Judiciário demorou quase 30 anos.

Potrero

Ali perto, também em Paranhos, no último dia 3 de setembro, foi o grupo de Potrero Guasu que se cansou de esperar. Eles ocupavam 1.000 hectares de 4 mil demarcados já há vários anos. Diante da falta de ação do governo para retirar os brancos da área e pagar-lhes indenizações (afinal, foi o próprio Estado brasileiro quem, décadas atrás, convidou milhares de colonos para se dirigir à região, a fim de “proteger” as fronteiras do país), os Guarani de Potrero já avisaram que permanecerão em suas terras.“Não vamos correr não! Vivos ou mortos estaremos aqui em Potrero Guasu”, afirmou uma liderança do grupo, segundo informe do Conselho da Aty Guasu.

Há mobilização crescente na sociedade civil brasileira quanto à situação dos Kaiowa e Guarani, diante da incapacidade que o governo federal vem demonstrando de atender as reivindicações indígenas.

Em julho, o governo federal publicou uma portaria que suspende a possibilidade de aumentar as terras indígenas – podendo dificultar mesmo os casos em que houve enormes injustiças no passado, como com os Kaiowa e Guarani, que, hoje, são cerca de 44 mil pessoas a ocupar somente 42 mil hectares, no total, divididos em cerca de 30 frações.

A chamada portaria 303, atualmente suspensa após protestos de indígenas por todo o país, também abre a possibilidade de autorizar projetos de mineração e realizar grandes obras como hidrelétricas e estradas em terras indígenas, sem fazer consulta aos grupos nem conceder-lhes indenizações. Os protestos indígenas no Brasil não param e só tendem a crescer, diante da insensibilidade da presidente Dilma Rousseff.

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