Um guarani-kaiowá muito jovem para morrer

Texto e fotos: Maria Pena

Campo Grande, Mato Grosso do Sul, Brasil. Teodoro Ricarte tinha cerca de 34 anos quando foi morto a pauladas e facadas no último dia 27 de setembro. Deixou sua esposa, três filhos – o mais velho deles estava com apenas 12 anos – e suas duas irmãs. Era o único homem da família, que ficou “guaxe”, como se chamam aos órfãos em guarani.

Em 2009, Teodoro decidiu acompanhar o cacique e outras lideranças na retomada da terra de seus ancestrais. Levou com ele toda a família para voltar a viver lá e reivindicar a demarcação dessa terra indígena de Ypo’i, mesmo lugar onde seus avós e sua mãe haviam nascido. A briga se daria com três fazendas que incidem na área, localizada no Município de Paranhos, Mato Grosso do Sul.

Foi em busca de um futuro melhor que de quis sair com sua família da reserva de Pirajuí, criada pelo governo no início do século XX e para onde muitas famílias foram levadas – à força, grande parte. O trabalho de Teodoro como boia-fria nas fazendas da região permitia que conseguisse alguns itens de subsistência, como sal e sabão. Muito apegado com suas irmãs, dividia e garantia para elas também essas poucas compras, além da caça. Não só, com elas também dividia o fogo e tudo o que isso implica.

Com a retomada Teodoro dizia a suas irmãs que faria três casas grandes para viverem juntos, com uma grande roça para garantir a subsistência deles e seus filhos. Sonhava também ser Ñanderu, rezador, e para isso estava se preparando. Como Ñanderu, andava sempre sem arma, e foi desarmado que foi morto.

Regressava para a comunidade de Ypo’i, no fim da tarde, em companhia de duas pessoas. Para chegar à área retomada, onde o grupo permanece por decisão judicial, é necessário atravessar a fazenda Cabeça de Boi, uma das três que incidem sobre a área reivindicada, atualmente à espera da conclusão dos trabalhos de identificação realizados pela Fundação Nacional do Índio (Funai).

Nesse percurso, ainda dentro da Cabeça de Boi, foram abordados por “Negão”, como é conhecido um dos funcionários dessa fazenda. “Negão”, habitualmente mantinha conversações pacíficas com os indígenas, desceu do seu cavalo, bateu na cabeça de Teodoro e lhe deu uma série de facadas, no rosto e pescoço. Os acompanhantes conseguiram correr para se salvar. Quando voltaram ao local, Teodoro já estava morto. Ali estiveram junto ao corpo até a manhã do dia seguinte, quando outros membros da comunidade foram ao seu encontro. O corpo foi levado pela Polícia Civil nessa mesma manhã do dia 28/09 para Paranhos e só pode retornar à comunidade para ser velado no dia seguinte, por decisão da Justiça Federal, e à revelia do proprietário da fazenda São Luiz, uma das três fazendas em disputa e onde seria o enterro.

A comunidade, de cerca de 70 famílias, não se sente segura. No total, relatam, são 7 pistoleiros que trabalham para as três fazendas da área. As duas testemunhas oculares foram ouvidas por autoridades que investigam a morte de Teodoro, mas a comunidade tem sérias dúvidas de que tenha havido um entendimento correto do depoimento delas, entre outros fatores, pela dificuldade das mulheres em comunicarem-se em português. “Quando um indígena testemunha, é como se ninguém tivesse visto, como se não valesse de nada”, comenta um membro da comunidade ao contar que, pese às denuncias, o assassino continua solto e na área da fazenda, tornando a ambiente ainda mais tenso.

A tensão retornou à área depois de quase dois anos de relativa tranquilidade. Em 2009, durante o último processo de retomada dessa área tradicional, um ataque de muitos pistoleiros à comunidade resultou no espancamento de alguns indígenas e na morte dos professores Rolindo e Genivaldo. O corpo de Rolindo segue desaparecido, e as investigações sobre os assassinatos ainda não foram concluídas. O assassinato de Teodoro aparentemente marca um novo período de conflito. Dois dias depois desse crime, um grupo de indígenas que ia pescar foi ameaçado por, no minimo, 8 disparos de balas de borracha pelos pistoleiros da fazenda São Luiz.

A comunidade ainda tenta entender o porquê do retorno das ameaças. “De certo estão fazendo isso porque estão perdendo essa luta. Estão apavorados. Ameaçam para ver se saímos, se abandonamos nossas terras. Mas não vamos sair!”, arrisca uma leitura da situação um dos membros da comunidade. Enquanto isso, ficam no aguardo de que a Justiça e a lei olhem por eles que, em dois anos, já perderam três de seus guerreiros na luta por um direito que lhes pertence.

A noite do velório foi de tensão na comunidade de Ypo’i. Enquanto ecoava pela mata o som das rezas dos que velavam pelo corpo brutalmente assassinado do guarani, a comunidade permanecia em alerta para qualquer eventual ataque a mando dos fazendeiros que circundam a área retomada. Teodoro seria enterrado como previsto pelos Guarani: em sua terra ancestral. O dia amanheceu, e Teodoro pôde ser enterrado na beira da mata de Ypo’i, na manhã do último sábado, 1o. Voltava, junto com seus ancestrais, para habitar de forma definitiva essas terras e mata a que seu espírito estava ligado. Poucas horas depois, uma tempestade de vento e chuva varreu a região. “Essa é nossa arma e nossa vingança”, explicou , entristecido, um guarani-kaiowá.

* A reportagem contou com a colaboração de membros da comunidade.

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